O Branco (Por Rafael Bahov Shinnishi)


O Branco
Rafael Bahov Shinnishi (rafajapa@msn.com)

“Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício.
Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho,
torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem
uma, duas vezes. Depois enxaguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão.
Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do
pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda
ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa.
A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer”.

Graciliano Ramos

A primeira ideia que ele teve para tentar driblar o Branco foi a de escrever a palavra ideia sem o acento, numa clara tentativa de se adequar a reforma ortográfica, embora suspeitasse que provavelmente não conseguiria manter o novo padrão no decorrer das mal traçadas linhas.
Era do seu conhecimento que tal verbete teria que ser escrito de agora em diante desse jeito esquisito, desnudo, tão difícil de se acostumar quanto deve ser para o sujeito calvo renunciar ao chapéu após décadas adornando a cabeça com o acessório providencial.
Depois ele começou a pensar no narrador.
Responsável por fazer o texto fluir, o narrador merecia a devida atenção.
Emprestar verossimilhança ao protagonista era umas das tarefas a ser cumprida, não importando o fato de que os dois (narrador e personagem) fossem o mesmo indivíduo.
Primeira pessoa? Talvez. Um texto construído apenas com diálogos? Não, não. Quem sabe, uma narrativa surrealista sem pé e sem cabeça, e sem tronco também? Até que poderia funcionar, mas só no caso dele ser um gênio, um artista das letras absurdamente intelectualizado como só os poetas o são. Mas felizmente o autor tinha espelho em casa, e acabou por optar pelo narrador em terceira pessoa, aquele que tudo sabe e tudo vê, no melhor estilo “arroz com feijão”.
Ainda com a silhueta do terror dos fazedores de textos prostrada do seu lado e visível apenas com o canto dos olhos, (não convém fitar o Branco olho no olho sob pena de perceber que as dezesseis primeiras linhas foram pro brejo) o herói-narrador resolveu fazer citações. Apenas três já seriam suficientes, assim evitaria ser comparado a um papagaio tagarela.
Iria distribuí-las no decorrer do texto, e utilizaria uma delas para ajudar no desfecho do conto e para
homenagear uma grande escritora nascida em terras estrangeiras mas de alma naturalizada em terra brasilis, ou seja, mataria dois coelhos com apenas uma canetada.
Como versar sobre o amor que nutria pelos livros e pela literatura sem citar Borges?
Simples. Era só dizer que amava os livros.
Mas, se conseguisse encaixar o nome do admirado escritor hermano em algum lugar do conto, obteria o mesmo êxito pelo qual ansiava e de quebra transmitiria a falsa impressão de ser uma pessoa culta.
- Um afago no ego de vez em quando não faz mal a ninguém. - pensou; e pensou bem alto, para poder usar um travessão.
Borges dizia que orgulhava-se mais dos livros que lera do que dos que escrevera, opinião que era compartilhada pelo autor contemporâneo imbuído da missão de dar um drible da vaca no Branco.
Rafael tinha uma tese lugar-comum: O camarada que muito lê, cedo ou tarde enveredar-se-á pelas alamedas da escrita. Não há como evitar.
Mergulhou numa espécie de transe literário ao imaginar seu nome associado à qualquer técnica revolucionária de expor idéias no papel, tal qual Kafka experimentaria se vivesse até o dia em que pudesse ouvir fragmentos de uma conversa informal e fosse possível distinguir o som da palavra “Kafkiano”.
A repentina lembrança das contas a pagar e de que estava atrasado para se deslocar ao trabalho trouxeram-o de volta à realidade. Previsível porém abençoada realidade.
Antes da última citação, se fazia necessário dissertar a repeito de algum assunto que pudesse despertar ao menos um pouco o leitor que homericamente tivesse tido a paciência de chegar até aqui.
O texto em si carecia de objetividade.
Não possuía uma finalidade específica.
Ele era um fim nele mesmo.
Refletiu por alguns segundos e concluiu que acabara de incrementá-lo com um novo elemento: a falsa modéstia. Apesar de falsa, a tal modéstia evidenciava uma incomum obsessão em passar uma rasteira no Branco. O famigerado Branco, escrito com maiúscula e respeitado, talvez mais temido do que qualquer outra coisa.
O Branco acompanha a história da literatura universal desde os mais remotos tempos, antes da bíblia de Gutenberg ser impressa e ainda perseverará mesmo após o último ponto final do último texto ser digitado pelo último escrevinhador do planeta, evento esse que será efusivamente comemorado e servirá de prólogo para uma nova era, onde os humanos abdicarão da palavra escrita e se comunicarão exclusivamente pelo poder da mente.
O autor, feliz da vida, se deu conta de que agora precisava finalizar seu texto.
Pensou em inúmeros finais, e aquele que mais lhe agradou era justamente o mais sui generis. Um sorriso perceptível apenas com ajuda de microscópio instalou-se no canto do lábio direito do autor como que dizendo -”Daqui não saio”, pois sabe-se lá há quanto tempo ele desejava escrever um conto que contivesse o termo sui generis.
O sorriso invisível contrastava com a imagem séria da autora que ele gostava tanto.
Não poderia existir melhor maneira de prestar-lhe homenagem do que terminar a historieta do jeito como ela começava seus romances.
Aaahhhh..... aqueles romances de tirar o fôlego ao mais experiente dos leitores e pródigos em esquisitices maravilhosas, que iniciavam com frases soltas, reticências, perguntas perturbadoras, letras minúsculas, questões introspectivas que só uma autora do quilate de uma Clarisse Lispector poderia dar vida.
De repente, o autor se deu conta que
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São Paulo, cinco de outubro de dois mil e oito